quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Os "assustados" de outrora



OS ASSUSTADOS DE OUTRORA

Apesar da humana e incorrigível tendência de vivermos bendizendo tempos passados, vítimas de uma estranha amnésia que nos faz esquecer tantas surras dolorosas que levamos “em nossa época”, nem tudo, nem tudo - sejamos honestos com a moçada... foi assim tão “risonho e franco” nas décadas precedentes... É claro que a memória, num genero­so processo seletivo, filtra impurezas vivenciais, depura as evocações de todo o cascalho imprestável, tentando, gentilmente, oferecer­-nos apenas as pérolas rebrilhantes daquilo que passou. Mas, numa sin­cera e desapaixonada análise retrospectiva, convenhamos que certos hábitos de nossas gostosas e modorrentas cidades, há trinta ou quarenta anos, constituíam algo de se dar constantes graças a Deus por terem acabado. Se, de um modo geral, a existência corria com muito menos a­tropelos do que nestes neurotizantes dias de hoje, havia umas coisi­nhas que... Nossa Senhora! Os tais “assustados” carnavalescos, por exemplo...
A juventude atual não faz a mínima idéia daquelas “brincadeiras” que, não poucas vezes, degeneravam em sopapos e desaforos envolvendo dezenas de pessoas. Vejamos como funcionava o apreciado divertimento.
Como geralmente só existia um clube social em cada comunidade, não era possível a utilização diária da única sede para as quentes folias momescas; tinha-se, então, que dançar em residências, preferin­do-se naturalmente os prédios mais amplos, com grandes salas para as “cobrinhas”. O problema principal consistia no seguinte: quase todas as famílias, se fossem previamente consultadas, recusariam a licença para a festança em seus domínios, sabendo das dores de cabeça que is­so sempre trazia. Diante da difícil situação, o diabo inspirou aos foliões a engenhosa fórmula dos “assustados”: sem qualquer aviso, invadia-se, de repente, o lar escolhido secretamente para a noitada, colocando-se os perplexos moradores ante um fato consumado. O “susto” realmente não era pequeno...
Não custa avaliar os transtornos decorrentes de tais molecagens coletivas. Terminado o jantar, a família preparava-se para a diária conversa à porta da rua, em que a vida alheia era criteriosamente vasculhada... Súbito, como um furacão, o bloco irrompia, casa adentro, com a charanga puxando valentemente o cortejo, ao som do trombe­teante “Zé Pereira”!
Era um “Deus-nos-acuda”, com os moradores correndo, atordoados, arrastando móveis, pedindo, aos berros inúteis, que se tivesse cuida­do com a cristaleira, enquanto o pagode pegava embalagem entre formidáveis gargalhadas gozativas dos felizes invasores!
Entretanto, nem todos os cidadãos acatavam pacificamente o abuso, e alguns reagiam como homens, até com violência, para conter a maré montante que transformaria o refúgio doméstico num pandemônio de muitas horas. Apesar de eu poder referir outras experiências, pois também minha família, em Belterra, foi vítima da cafajestada, prefiro fazer especial alusão a uma encrenca momesca ocorrida qui em Santarém, que se tornou famosa, dado o gabarito dos personagens nela envolvidos.
Uns moços da elite mocoronga dos anos trinta programaram o “assustado” daquela noite, elegendo, para o ataque, a ampla residên­cia do doutor Augusto Montenegro, advogado local e homônimo do céle­bre político que foi governador do Estado do Pará. Apesar de isoladas advertências de alguns rapazes mais ponderados, sobre o gênio explo­sivo do figurão, nada impediu que o plano fosse posto em prática. Contratado o conjunto musical, entre cujos componentes se incluíam Wil­son Dias da Fonseca e Joaquim Toscano, tudo ficou pronto para a ale­gre batalha carnavalesca. “Viva o Zé Pereira!” e... vamos lá!
Embora se temesse, ninguém acreditava realmente que o causídico levasse às últimas consequências seu protesto contra a pândega. Contudo, quando o esgoelante batalhão transpôs a soleira do prédio visado, a velha genitora do proprietário caiu no chão, dura, com uma aparente síncope cardíaca. Louco de raiva, doutor Montenegro apanhou um imenso revólver, gritando:
- Vai morrer todo mundo!... Vocês mataram minha mãe, cachorros!... Não sobra nenhum!...
Mas, antes de atirar, o angustiado filho procurou acudir a ofegan­te senhora - providenciais segundos de que se prevaleceram os heróicos foliões para escapar, em furiosas correrias... Contam testemunhas que saía gente pelas janelas, havendo linguarudos capazes de garantir que até buraco de fechadura deu passagem a espavoridos súditos de Momo...
Felizmente, a idosa dama não morreu. Mas, depois do cômico, e qua­se trágico, sururu, os adeptos dos “assustados” passaram a agir com um pouco menos de imprudência, compreendendo que, em certas ocasiões, eles acabavam se “assustando” mais que os próprios moradores das casas que escolhiam para as inocentes fuzarcas de fevereiro...
E, por causa de enguiços assim, às aloucadas e indesejáveis in­vasões carnavalescas foram rareando, novos clubes surgiram na cidade, até que se extinguiram de vez (deixando sempre alguma saudade...), os improvisados arrasta-pés, repondo a paz nas almas dos inquietos senhores de mansões com amplos espaços...
Também por isso, Deus seja louvado!
 
(Emir Bemerguy – “Santarenices” – 1975)

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