segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Falta de material

Uma explicação àqueles que acompanham o blog por terem diminuído os posts: é que moro em Belém e a maior parte da obra de papai continua em Santarém. O que postei até agora foi material que trouxe comigo quando fui até Santarém por ocasião de sua morte. Na semana do carnaval devo passar alguns dias na Pérola do Tapajós, e então deverei coletar bastante material para mostrar. Até lá, vou mostrando uma ou outra coisa que ainda tenho por aqui.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Formatura

  Papai e mamãe se formaram na Faculdade de Odontologia do Pará em dezembro de 1956 como os dois primeiros colocados de sua turma. Aqui, com anotações feitas por papai, as fotos oficiais das formaturas.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Cópia

Cópia do texto original de um dos poemas feitos para mamãe, inclusive com correções feitas a caneta por papai:

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O pior dos ateus



O PIOR DOS ATEUS
“Por que me dizeis ‘Senhor! Senhor!’ e não fazeis o que vos mando?” - Lucas 6,46
É uma afirmativa que sempre escandaliza certos católicos rotulados de “praticantes”: pode-se ir à igreja diariamente, conhecer de cor a Bíblia inteira e, na vida... ser ateu! Sim. Ateu prático - aquele que muito fala em Deus, mas O exclui cuidadosamente de sua rotina cotidiana.
O ateu teórico promove publicamente sua descrença, fazendo alarde de um circunstancial e pedante ceticismo, que dura enquanto persistem as calmas da existência, as situações normais, sem sobressaltos e medrosas incertezas. Mas na hora do desastre, no pavoroso momento da catástrofe, seu pretensioso esquema racionalista se desmonta num passe de mágica... E ele, feito para Deus como qualquer homem, reza, suplica e pede ajuda ao Senhor que negara. “Se o Pai do céu me der vida e saúde, ainda hei de provar que Ele não existe!” - sentenciou o humorista Millôr Fernandes, definindo genialmente o ridículo ateísmo de identificadas elites.
O ateu prático - o pior de todos! - tem-se, ao contrário do outro, como o dono da Fé, o modelo do crente. Quanta piedade... domingueira e de sacristia! Nos negócios e diversões, nas leituras e na criação dos filhos, age, porém, exatamente como se Deus não existisse! É adúltero, hipócrita, desonesto e mau, re­petindo as mesmas iniquidades dos réprobos sem nenhum código moral a lhes reger o comportamento!
É à gente fingida assim que Se dirige Cristo na contundente indagação citada no início desta página. Se vivo a bater no peito, proclamando minha convicção religiosa, tenho de fazer o que determina o meu suposto Divino Mestre, sendo luz na comunidade, dando diários testemunhos de coerência com o Evangelho e de fi­delidade à Igreja a que juro pertencer.
Só desta forma - vivendo a doutrina - não se correrá o risco supremo e irremediável de ouvir, quando já não houver tempo pa­ra mais nada: - “Ide, malditos, para o fogo eterno, pois nunca vos conheci!”
Ensina-nos, ó Jesus Salvador, a fazer de nossas vidas um cristalino espelho de Ti!
(Emir Bemerguy – “Sementes para Passarinhos – Meditações” – 1975)

domingo, 20 de janeiro de 2013

Hino do Colégio Santa Clara

HINO DO COLÉGIO SANTA CLARA
Letra: Emir Bemerguy, em 17/03/1969
Música: Wilson Fonseca

Tu nasceste de um sonho sublime
Deus de guarde, ó Colégio querido,
Patrimônio intocável de um povo!
Na Amazônia o fanal que tens sido
Nós aqui proclamamos de novo!

Não apenas civismo e cultura
Recebemos aqui nestas salas,
Pois a luz do Evangelho fulgura
Quando em termos de Fé tu nos falas.

No momento em que formos embora,
Cada uma de nós que te amara,
Seguirá, podes crer, vida a fora,
Com saudade de ti, "SANTA CLARA"

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Sucuri


Mais um trecho do romance "Maromba", de 1975

SUCURI

Entardece. Cansado, o sol se apóia sobre as copas da mataria azul, reunindo esforços e coragem para o mergulho no desconhecido, de onde boiará, de manhãzinha, consumando o milagre triunfal de um novo dia. Entretanto, ainda está bem claro e Antônio Presidente atira a primeira cuia com água sobre o corpo, num gostoso banho, quando reboa pelo ar o berro horrível: - Aaaiii!... Papaaaiii!...
- A sucuriju pegou o Tuninho! - denuncia, espavorida, a irmã de sete anos.
Como um raio, Maria Flor, que costurava, pula n'água, com a tesoura grande na mão.
- Deixa comigo! - brada, enérgico, o marido, correndo com o facão afiado. Dá uma trombada na menina, atirando-a longe e salta quase em cima do monstro que aperta a esperneante criança em suas roscas fatais!
Com indizível pavor nos olhos esbugalhados, lutando desesperadamente para se livrar da triturante pressão, ruge a inocência martirizada: - Aaaiii!... Papaaaiii!... Me sarve, papaizinho!... Meus osso tão quebrando!... Mamãezinha do meu coração! Aaaiii!...
Os quatro irmãos da vítima fazem tremendo alarido de medo e compaixão, enquanto se trava formidável combate aquático. Sua simples visão é suficiente para fulminar covardes ou cardíacos. Maria Flor conseguiu agarrar a cabeçorra da enorme cobra e tenta introduzir a tesoura em seus olhos, pondo, na briga desigual, toda a força que lhe dá a alma rasgada de dor e ódio. Escancarando a bocarra onde se agita a língua bífida, a serpente procura morder o rosto da valente mãe.
Louco de fúria, Presidente acerta a primeira terçadada na fera, que logo começa a afrouxar o torniquete assassino, dando rabanadas violentas que fazem um escachoante tumulto na água suja. Repetindo, vezes sem conta, os violentos golpes, o alucinado pai termina matando a sucuriju. Mas, quando retira o menino daquele inferno de sangue e lama, compreende, com um profundo soluço, que tudo foi inútil: toda fraturada, a criança acaba de morrer, por asfixia! Recebera o bote fatídico da cobra quando brincava na escada do alpendre.
Antônio não chora há muitos anos e nem saberia dizer quando isso ocorreu pela última vez. Todavia, com o garoto morto nos braços, exausto da luta feroz, o pobre pai, agasalhando o cadáver sobre a mesa da cozinha, não consegue reter o pranto convulsivo. O rio acaba de lhe roubar o segundo filho em menos de três meses!
Aplacada a tempestuosa crise emocional que agitava Maria Flor e postos em calma os chorosos maninhos do falecido, passa-se a fazer o que a vida (ou a morte?) exige: mandar avisos à vizinhança através do prestativo afilhado e preparar o velório do pequeno defunto, para, no dia seguinte, conduzi-lo ao cemitério de Paricatuba. No entanto, fazendo das tripas coração, Antônio ainda vai substituir o vaqueiro no fornecimento do capim para a pequena boiada. É que, na várzea, até o sofrimento, às vezes, se torna um luxo proibido.
Antônio e Maria não dormem um minuto sequer nessa noite, arrastada e interminável como soro pingando em veia de doente. Além da mágoa dilacerante de um filho a menos, o caboclo tem seu martírio ampliado por uma amarga sensação de culpa: acha que deveria ter morto a sucuriju de qualquer maneira, quando ela pegou o pato. A esposa, porém, já lhe disse, com o apoio de todos os amigos presentes: - Tira isso da cabeça! Era o dia dele. Se tu havera de matar essa marvada, o cão mandava logo outra mais grande do que ela. Foi a vontade de Deus.
É impossível acreditar, contudo, por mais fatalista que se consiga ser, que o Senhor de todas as misericórdias tenha desejado mesmo que uma criança morresse tão pavorosamente assim.
Às duas horas da fria madrugada, com os caboclos jogando baralho, na cozinha, para espantar o sono, começam os dois cônjuges a conversar, a prestações e em voz baixa, debruçados no parapeito do alpendre: - Essa nossa vida, Maria, tá mesmo um causo sério - principia, hesitante, o marido.
Ele nunca mais fumara. Contudo, para acalmar os nervos esfrangalhados, pita um cigarro que enrolou durante dez minutos, já sem a prática antiga. Contra os seus hábitos de tagarelice, a mulher continua muda, a olhar, de mãos no queixo, um ponto invisível na cara da noite escura. Mais alguns momentos transcorrem. Como quem pensa alto, Presidente fala, de novo: - Nem que nós havera de se acabar tudinho em boca de cobra ou jacaré, eu juro que não arredo pé daqui pra canto argum. Para onde, então, a gente podia se mudar? Pra murrer de fome na cidade, é mais melhor penar na varja. Pelo meno no verão a gente não véve desinfeliz.
Suspirando fundo, Maria Flor concorda, embora com alguma grosseria: - Não fica pensando bestera, homem. Eu só ia de vez morar na cidade se fosse presa por sordado e levada para o xilindró. Aqui a gente pega bote e dentada de cobra, ferrada de caba, arraia e lacrau. Lá é carro que mata, é bandido que assarta, é ruindade de patrão e ortoridade que só quer os pobre como inleitor, engraxate e lavadeira. Tisconjuro!
Dando um tapa no próprio rosto, como autoflagelação, mas, em verdade, esfarelando um carapanã impertinente, Antônio confidencia, enquanto atira a bagana do cigarro dentro do rio: - Eu tô com muita vergonha de ti e dos pirralho, Maria.
Abaixa a cabeça, mas, erguendo-lhe o queixo com as mãos e fitando meigamente os seus olhos, indaga a esposa, com ternura na voz: - Mas por que então, meu bem?
Usada com pouca freqüência, a expressão carinhosa surge no instante psicológico exato. A esperta criatura intuiu rapidamente a razão determinante do incomum desabafo e se sente na feminina obrigação de confortar o seu humilhado e másculo companheiro.
Com a dificuldade visível de quem se esforça querendo vomitar coisa intragável, ele comprime a mão da esposa de encontro ao próprio coração e diz, num sussurro: - Eu churei na ilharga de vocês. E churei como criança. Macho não chora, Maria. Só lagrima.
Lutando para não dar continuidade ao teimoso pranto que já lhe ensopa os olhos amarelados, Maria Flor aperta-lhe fortemente a mão calosa. Não pode dizer nada, ainda. Mas assim que consegue engolir o nó da garganta, segreda-lhe ao ouvido: - Não pensa mais nisso, meu amurzinho. Vergonha é robar e ser marvado. Tu só fez churar a morte tão triste do nosso Tuninho. - Detém-se, engasgada. Mas logo completa, num só fôlego: - Eu inda te quero mais bem dispôs dessa desgraça. Sei que tu é macho pra cachurro, mas tu não deixou de ter um coração bom e amuroso dentro do peito.
E, de rostos unidos, os dois emocionados caboclos ali ficam, durante longos minutos. Na cozinha, o jogo de baralho prossegue, animado, a até uns palavrões já saíram por lá. É preciso, porém, interromper o doce colóquio para servir mais uma rodada de café quentinho aos participantes do velório. Como foi uma criança que morreu, não se bebe cachaça. Só em vigília de adulto os varzeiros gostam de tomar umas duas ou três.
(Emir Bemerguy - "Maromba" - 1975)

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

América 500 anos

Este letra foi feita para o poema sinfônico em quatro movimentos "América 500 Anos", de autoria do Maestro Isoca. O texto é cantado no quarto movimento, e podemos ver a execução deste movimento no vídeo mais embaixo, que também traz a Canção de Minha Saudade, um dos hinos não oficiais de Santarém.



AMÉRICA 500 ANOS
(Poema Sinfônico – Coda)
Letra: Emir Bemerguy (Santarém-PA, 08.06.1992)
Música: Wilson Fonseca (Santarém-PA, 1992)

Enfrentando os perigos dos mares,
Sem temer o feroz desafio,
Um punhado de heróis produziu
Epopéia das mais singulares!
Empurrados por ventos potentes,
Dirigidos por Deus, sempre avante,
Descobriram um céu tão distante,
Com florestas, tesouros e gente!

Refrão

Novo Mundo de encantos sem par,
Fascinante, intocado, altaneiro,
Universo esperando o pioneiro
Que o viesse, afinal, desbravar!
A Cristóvão Colombo os louvores!
O gigante transpôs oceanos
E há quinhentos fantásticos anos
Encontrou um rincão de esplendores!

Do Evangelho aos clarões divinais
E à sombra da Cruz, tempo afora,
Foi a América em frente e, agora,
Ao passado não volta jamais!
Pisa firme no chão do presente,
De olhos postos no grande porvir!
Progredindo haverás de seguir!
Deus te salve, eternal Continente!




terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A medicina de mamãe

  Trecho do livro de memórias de meu pai - "Enquanto eu me lembro" - em que ele conta os métodos pouco ortodoxos usados por minha avó para manter os filhos livres de vermes...


A MEDICINA DE MAMÃE

Sempre que presencio as dengosas reações dos meus filhos ante a ingestão dos geralmente coloridos e saborosos remédios atuais, logo sinto a memória retroceder no tempo e me ponho a recordar vivências marcantes da longínqua meninice. Adoecer, nos dias de hoje, é incomparavelmente menos martirizante do que outrora, quando, às vezes, só o medo de bárbaros tratamentos restituía magicamente comprometidas saúdes.
Vermífugos... Purgantes... Hoje, a criança nem sequer precisa saber que está sendo medicada contra lombrigas: a mãezinha adiciona ao leite, à refeição, um produto que ali se dissolve sem alterar o sabor do alimento e irá exercer poderosa ação sobre os parasitas intestinais. Naquela época, porém, a escola podia até ser “risonha e franca”, mas os tratamentos eram carrancudos e confundiam franqueza com grosseria.
Duas vedetes então pontificavam na área dos purgativos: o óleo de rícino ou mamona e o quenopódio, cada qual mais intragável do que o outro. E as duas pragas se reuniam para formar uma terceira: a “Panvermina”. Pois era esta que Mamãe preferia - uns comprimidos redondos, enormes, moles, que, ao menor contato com os dentes, soltavam seu conteúdo na boca, deixando um gosto de inferno, de alma penada. Agora, o ritual, a cuja simples evocação meu rancoroso estômago ainda protesta, com ânsias de vômito.
Eros e eu - os dois filhos maiores - tomávamos o odioso remédio em todas as férias de fim de ano, tivéssemos ou não cara de quem hospeda vermes nas estranhas. Às quatro horas da madrugada éramos acordados de um sono dormido a prestações, tal o pavor do negro dia que nos aguardava. Creio que a última noite de um condenado à morte não deve ser muito mais agoniada...
Mamãe aparecia já com o vidro de “Panvermina” em uma das mãos e uma tigela de horroroso chá fumegante na outra. Eu sempre tinha o privilégio de ser guilhotinado primeiro, supostamente pela maior docilidade, mas, de fato, porque mais intenso era o medo da digestiva palmatória. Fazendo o sinal-da-cruz, fechava o nariz e ia engolindo as terríveis bolotas (seis, em média), ajudando-as a descerem com uns forçados goles de chá. Afinal, friccionando o ventre para conter os espasmos expulsivos, estava pronto para assistir à melhor parte do espetáculo: a “panverminação” de meu pobre mano que, até hoje, trinta e tantos anos volvidos, só toma qualquer pílula em perigo de vida. E vale a pena um parágrafo.
Eros fazia o maior dos escangalhos para ser medicado. Enquanto para mim aquilo tudo se apresentava como um “purgatório” em pleno sentido, ao seu infantil julgamento a tortura da madrugada assumia as fantasmais proporções de um enlouquecedor inferno. O rebelde guri estragava meia dúzia de cápsulas para deglutir uma só, mordendo-as, espatifando-as na boca semi-cerrada. Isto, por entre uma alegre banda de música de pescoções e chineladas gradativamente numerosos; as bordoadas iam se tornando mais vigorosas e frequentes na exata proporção em que o chá esfriava e a “Panvermina” era desperdiçada. Ele só engolia mesmo as petecas diabólicas quando papai deixava de fumar, nervoso, na rede vizinha e evoluía dos ralhos inofensivos aos enérgicos bolos de palmatória. Que drama, ó Deus!... E ao terminar a suarenta agonia anual, o Sol já saíra, tanto ela se prolongara; às vezes, entretanto, até as auroras se antecipavam, curiosas, para verem que confusão era aquela...
Só isto? Coisa nenhuma! Agora, serenados os ânimos e reposta a ordem no campo de batalha, vinha a não menos temível “dieta”: vinte e quatro horas trancados num quarto calorento (golpes de ar eram um perigo...), tomando chá e caldo de galinha! Jamais entendi as misteriosas razões do severo resguardo, mas desconfio que os antigos tentavam agredir os vermes por todos os lados, privando também os indefesos bichinhos de luz e ar... Eis uma das definitivas consequências de tão insólita medicina: Eros e eu nunca mais, vida a fora, suportaríamos chá de qualquer espécie e muito menos caldo de galinha! Ah! Não existe nada como essas tão saudosas fixações da “infância querida que os anos não trazem mais”!
Pode-se indagar, agora: mas valia mesmo a pena toda essa aflitiva encrenca? “Meninos, eu vi!” - diria o austero poeta: vi, com estes olhos que não gostaria que a terra comesse tão cedo, vi sadias lombrigas de quase meio metro desabarem, céleres, dos envenenados intestinos para menos pestíferos urinóis! Mas, por vingança, deixavam sempre - os demônios! - um estoque de larvas para as diversões das próximas férias...
Faz uns dez anos. Estava eu numa farmácia da cidade, quando ouvi claramente uma senhora humilde perguntar à balconista se ainda vendiam “Panvermina”. Saí, apavorado, vendo e ouvindo súbitas visagens: mamãe apareceu com a tigela e o amaldiçoado vidro e presenciei nitidamente os esperneantes berros de meu valente mas sempre derrotado irmão.
(Emir Bemerguy - Enquanto eu me lembro -1975)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O velório

  Mais um trecho do romance "Maromba". Aqui se conta a história do velório de um ribeirinho.


Maria Flor está cerzindo umas roupinhas das crianças. Atraída por movimentos de remos forcejando contra a correnteza, levanta os olhos do trabalho: uma canoa com dois vaqueiros chega à casa da fazenda.
- Ei, seu Presidente!
- O papai não tá,  responde um dos garotos.
- Que é, Pedroca? - interroga a patroa, reconhecendo o caboclo.         ~
De cabeça baixa, o reforçado varzeiro comunica:
- Seu Romuardo Bicudo morreu, não faz bocado. Paresque foi besterada no coração dele. O enterro é amanhã e a gente viemo convidar pro quarto.
Espantada com a brutal notícia, Maria faz o sinal da cruz, reza em silêncio e promete que combinará com o esposo, ao chegar com Zé Potoca, o jeito de comparecerem à residência enlutada.
Nesse mundo líquido, cujo único e frágil cordão umbilical com a civilização é um rádio de pilha, velório - ou “quarto”, como eles chamam - é uma forma de divertimento, quase uma festa. Sem lazer algum, a braços com uma luta feroz e diuturna pela simples sobrevivência, os ribeirinhos transformam a vigília para um defunto em desinibida reunião social onde nada falta: comilança, beberança, baralho, dominó, mexericos. Por isso, ninguém perde um desses encontros e cada família colabora com alguma coisa para amenizar a situação dos herdeiros sem herança. Como ocorre nos puxiruns, leva-se um pouco de querosene, farinha, café, bolacha, velas de cera e cachaça.
Deixando as crianças com Zé Potoca, lá se vai, à noite, o casal. Apesar de a distância ser pequena, como está ventando muito, preferem usar o barco “Flô das onda II” para vencer os quatro quilômetros da viagem. Como contribuição para o ato fúnebre, levam um quilo de farinha, açúcar e meio litro de querosene.
Encontram muita gente e pouco choro. Protestante não é, em geral, espalhafatoso ante a morte, pois, convicto de que o extinto está salvo só por causa da fé que possuía, de certo modo exulta quando um irmão se vai, porque ele ganhou o céu antecipadamente, apenas dizendo “Jesus é meu Senhor”. Após cumprimentar os parentes do falecido, cada qual se arruma como pode. As mulheres fofocam na ampla cozinha, enquanto os homens fazem avaliações de prejuízos na sala da frente. Não há velas acesas e nem se fala em rosário de Nossa Senhora, desde que o morto era Testemunha de Jeová, não tendo necessidade alguma dessas gorjetas aos santos para transpor, lampeiro, os portões do paraíso...
Conversa vai e vem, café aparece e some, cachaça chega e não dá para quem quer. A família é protestante, mas respeita os costumes da várzea e deixa beber quem quiser. Começa, então, um animado “sete e meio”, o famoso e fácil jogo de baralho. Formam-se três rodas, sendo uma na mesa grande e duas no chão, à luz de resfolegantes “Aladins” - candeeiros de luxo, usados somente em ocasiões especiais.
- Hum!... Essa curimatá muquiada tá muito porreta! - proclama Nhuquinha Catauari, farejando o ar, de cara erguida. O cheiro da coirona mata a catinga do querosene. Vou tirar a barriga velha da misera nesse quarto do Bicudo.
- Bota mais uma aqui, Rosa! - pede Miró Sardinha. Hoje eu quero encher a cara pra não me alembrar dos perjuízo dessa enchente do cão.
E a temperatura vai esquentando... Saem anedotas pouco familiares... As reações evoluem das discretas risadinhas particulares às estrondosas gargalhadas coletivas... Come-se enquanto se joga baralho, dominó e conversa fora. Brinca-se. A noite avança. De repente, a queixa insultuosa: - Tu tá rubando, seu curno! - grita Zeca Tralhoto, a esfregar as cartas do baralho no focinho de Juca Toró.
Com várias doses de aguardente no lombo, o ofendido nem pede explicações: planta o braço no pé do ouvido de Tralhoto, quase tão bêbado quanto ele próprio e... o tempo fecha! Lá da cozinha, a mulherada berra: - Meu Deus! Respeitem o falecido!...
Não se respeita nada. Reviram-se as cadeiras, candeeiros são quebrados. Até o defunto desabou da cama onde estava, pois, generalizado o conflito e com ambiente meio escuro, um dos brigões caiu por cima dele. Porre como se encontrava, julgou que fosse um adversário e não teve dúvidas: encheu de murros as ventas de Romualdo e o fez rolar para o chão, a pontapés!
Quase todos trocam coices e poucos tentam acalmar os valentes, pondo alguma ordem naquela tremenda bagunça. Diversos caíram no rio, à força de empurrões, tapas ou pisões, e a velha Nica Farofa está de cabeça partida, tal o entusiasmo de um cascudo que lhe acertaram com um dominó. Musculosos e abstêmios, os filhos de Romualdo Bicudo, ajudados por Presidente, gritam, pedem calma, por entre bofetões e gravatas distribuídos entre os que precisavam aprender a criar vergonha, ao menos em velórios.
A muito custo, após dez minutos de pau solto e escoriações de larguras variáveis, o ambiente retoma a perdida paz. O defunto readquire sua dignidade comprometida, providenciam-se curativos. Os mais bêbados são postos em sossego, amarrados nas canoas, e a liturgia prossegue, entre novas doses de café, merendas e joguinhos de dominó e baralho. Ninguém bebeu mais, porque a cana acabou. A noite já exibe vergonhosas rugas de velhice remelenta. Não tardará muito a ceder, emburrada como fedelho de castigo, o trono a um novíssimo dia de luzes e de luto, de lutas sem lucros.
Sepultaram Romualdo no cemitério de Paricatuba e ele se enfiou no túmulo com os óculos na cara esmurrada: era sua derradeira vontade, expressa nos estertores da morte. Com sacrifício, pagara as lentes esverdeadas no crediário da “Ótica do Povão”, lá na cidade, e não queria deixá-las para ninguém. Talvez pretendesse apreciar melhor o festim dos vermes sobre suas carnes...
Voltando ao lar, Maria Flor comenta, entre dois bocejos: - Puxa! Esse quarto do seu Romuardo até que não foi ruim. Tem uns tão chato que dá até vontade de dormir. A briga foi animada e eu só não gustei de jogarem o defunto no chão.
Antônio concorda, com uma restrição: - É. Eu só não achei mais melhor porque até agora não sei quem foi o filho duma égua que me sapecou um baita beliscão na bochecha da bunda, na hora da porrada. Quase arranca um pedaço. Vou até fumentar com andiroba e saro
Vute! - finaliza a companheira. Quem sabe, meu bem, se não foi o falecido Bicudo. Benzendo-se, explica a hipótese: - Ele era tão brincalhão!... 

(Emir Bemerguy - trecho do romance "Maromba" - 1975)