Uma explicação àqueles que acompanham o blog por terem diminuído os posts: é que moro em Belém e a maior parte da obra de papai continua em Santarém. O que postei até agora foi material que trouxe comigo quando fui até Santarém por ocasião de sua morte. Na semana do carnaval devo passar alguns dias na Pérola do Tapajós, e então deverei coletar bastante material para mostrar. Até lá, vou mostrando uma ou outra coisa que ainda tenho por aqui.
Espaço para mostrar um pouco do legado de meu pai, Emir Hermes Bemerguy, nascido em 04/03/1933 e falecido a 13/11/2012. Ele deixou uma quantidade muito grande de material escrito, entre poemas, crônicas, um romance, etc., e irei colocando aqui um pouco desta obra. Como as flores, ele deixou uma "saudade perfumada", que é o título de um dos seus poemas.
segunda-feira, 28 de janeiro de 2013
quinta-feira, 24 de janeiro de 2013
Formatura
Papai e mamãe se formaram na Faculdade de Odontologia do Pará em dezembro de 1956 como os dois primeiros colocados de sua turma. Aqui, com anotações feitas por papai, as fotos oficiais das formaturas.
quarta-feira, 23 de janeiro de 2013
Cópia
Cópia do texto original de um dos poemas feitos para mamãe, inclusive com correções feitas a caneta por papai:
terça-feira, 22 de janeiro de 2013
O pior dos ateus
O PIOR
DOS ATEUS
“Por
que me dizeis ‘Senhor! Senhor!’ e não fazeis o que vos mando?” - Lucas 6,46
É
uma afirmativa que sempre escandaliza certos católicos rotulados de “praticantes”:
pode-se ir à igreja diariamente, conhecer de cor a Bíblia inteira e, na vida...
ser ateu! Sim. Ateu prático - aquele que muito fala em Deus, mas O exclui
cuidadosamente de sua rotina cotidiana.
O
ateu teórico promove publicamente sua descrença, fazendo alarde de um
circunstancial e pedante ceticismo, que dura enquanto persistem as calmas da existência,
as situações normais, sem sobressaltos e medrosas incertezas. Mas na hora do
desastre, no pavoroso momento da catástrofe, seu pretensioso esquema racionalista
se desmonta num passe de mágica... E ele, feito para Deus como qualquer homem,
reza, suplica e pede ajuda ao Senhor que negara. “Se o Pai do céu me der vida e
saúde, ainda hei de provar que Ele não existe!” - sentenciou o humorista Millôr
Fernandes, definindo genialmente o ridículo ateísmo de identificadas elites.
O
ateu prático - o pior de todos! - tem-se, ao contrário do outro, como o dono da
Fé, o modelo do crente. Quanta piedade... domingueira e de sacristia! Nos
negócios e diversões, nas leituras e na criação dos filhos, age, porém,
exatamente como se Deus não existisse! É adúltero, hipócrita, desonesto e mau,
repetindo as mesmas iniquidades dos réprobos sem nenhum código moral a lhes
reger o comportamento!
É à gente fingida assim que Se dirige Cristo
na contundente indagação citada no início desta página. Se vivo a bater no
peito, proclamando minha convicção religiosa, tenho de fazer o que determina o
meu suposto Divino Mestre, sendo luz na comunidade, dando diários testemunhos
de coerência com o Evangelho e de fidelidade à Igreja a que juro pertencer.
Só
desta forma - vivendo a doutrina - não se correrá o risco supremo e
irremediável de ouvir, quando já não houver tempo para mais nada: - “Ide,
malditos, para o fogo eterno, pois nunca vos conheci!”
Ensina-nos,
ó Jesus Salvador, a fazer de nossas vidas um cristalino espelho de Ti!
(Emir Bemerguy – “Sementes
para Passarinhos – Meditações” – 1975)
domingo, 20 de janeiro de 2013
Hino do Colégio Santa Clara
HINO DO COLÉGIO SANTA CLARA
Letra: Emir Bemerguy, em 17/03/1969
Música: Wilson Fonseca
Tu nasceste de um sonho sublime
Deus de guarde, ó Colégio querido,
Patrimônio intocável de um povo!
Na Amazônia o fanal que tens sido
Nós aqui proclamamos de novo!
Não apenas civismo e cultura
Recebemos aqui nestas salas,
Pois a luz do Evangelho fulgura
Quando em termos de Fé tu nos falas.
No momento em que formos embora,
Cada uma de nós que te amara,
Seguirá, podes crer, vida a fora,
Com saudade de ti, "SANTA CLARA"
sexta-feira, 18 de janeiro de 2013
Sucuri
Mais um trecho do romance "Maromba", de 1975
SUCURI
Entardece. Cansado, o sol se apóia sobre as
copas da mataria azul, reunindo esforços e coragem para o mergulho no
desconhecido, de onde boiará, de manhãzinha, consumando o milagre triunfal de
um novo dia. Entretanto, ainda está bem claro e Antônio Presidente atira a
primeira cuia com água sobre o corpo, num gostoso banho, quando reboa pelo ar o
berro horrível: - Aaaiii!... Papaaaiii!...
- A sucuriju pegou o Tuninho! - denuncia,
espavorida, a irmã de sete anos.
Como um raio, Maria Flor, que costurava, pula
n'água, com a tesoura grande na mão.
- Deixa comigo! - brada, enérgico, o marido,
correndo com o facão afiado. Dá uma trombada na menina, atirando-a longe e
salta quase em cima do monstro que aperta a esperneante criança em suas roscas
fatais!
Com indizível pavor nos olhos esbugalhados,
lutando desesperadamente para se livrar da triturante pressão, ruge a inocência
martirizada: - Aaaiii!... Papaaaiii!... Me sarve, papaizinho!... Meus osso tão
quebrando!... Mamãezinha do meu coração! Aaaiii!...
Os quatro irmãos da vítima fazem tremendo
alarido de medo e compaixão, enquanto se trava formidável combate aquático. Sua
simples visão é suficiente para fulminar covardes ou cardíacos. Maria Flor
conseguiu agarrar a cabeçorra da enorme cobra e tenta introduzir a tesoura em
seus olhos, pondo, na briga desigual, toda a força que lhe dá a alma rasgada de
dor e ódio. Escancarando a bocarra onde se agita a língua bífida, a serpente
procura morder o rosto da valente mãe.
Louco de fúria, Presidente acerta a primeira
terçadada na fera, que logo começa a afrouxar o torniquete assassino, dando
rabanadas violentas que fazem um escachoante tumulto na água suja. Repetindo,
vezes sem conta, os violentos golpes, o alucinado pai termina matando a
sucuriju. Mas, quando retira o menino daquele inferno de sangue e lama,
compreende, com um profundo soluço, que tudo foi inútil: toda fraturada, a
criança acaba de morrer, por asfixia! Recebera o bote fatídico da cobra quando
brincava na escada do alpendre.
Antônio não chora há muitos anos e nem
saberia dizer quando isso ocorreu pela última vez. Todavia, com o garoto morto
nos braços, exausto da luta feroz, o pobre pai, agasalhando o cadáver sobre a
mesa da cozinha, não consegue reter o pranto convulsivo. O rio acaba de lhe
roubar o segundo filho em menos de três meses!
Aplacada a tempestuosa crise emocional que
agitava Maria Flor e postos em calma os chorosos maninhos do falecido, passa-se
a fazer o que a vida (ou a morte?) exige: mandar avisos à vizinhança através do
prestativo afilhado e preparar o velório do pequeno defunto, para, no dia
seguinte, conduzi-lo ao cemitério de Paricatuba. No entanto, fazendo das tripas
coração, Antônio ainda vai substituir o vaqueiro no fornecimento do capim para
a pequena boiada. É que, na várzea, até o sofrimento, às vezes, se torna um
luxo proibido.
Antônio e Maria não dormem um minuto sequer
nessa noite, arrastada e interminável como soro pingando em veia de doente.
Além da mágoa dilacerante de um filho a menos, o caboclo tem seu martírio
ampliado por uma amarga sensação de culpa: acha que deveria ter morto a
sucuriju de qualquer maneira, quando ela pegou o pato. A esposa, porém, já lhe
disse, com o apoio de todos os amigos presentes: - Tira isso da cabeça! Era o
dia dele. Se tu havera de matar essa marvada, o cão mandava logo outra mais
grande do que ela. Foi a vontade de Deus.
É impossível acreditar, contudo, por mais
fatalista que se consiga ser, que o Senhor de todas as misericórdias tenha
desejado mesmo que uma criança morresse tão pavorosamente assim.
Às duas horas da fria madrugada, com os
caboclos jogando baralho, na cozinha, para espantar o sono, começam os dois
cônjuges a conversar, a prestações e em voz baixa, debruçados no parapeito do
alpendre: - Essa nossa vida, Maria, tá mesmo um causo sério - principia,
hesitante, o marido.
Ele nunca mais fumara. Contudo, para acalmar
os nervos esfrangalhados, pita um cigarro que enrolou durante dez minutos, já
sem a prática antiga. Contra os seus hábitos de tagarelice, a mulher continua
muda, a olhar, de mãos no queixo, um ponto invisível na cara da noite escura.
Mais alguns momentos transcorrem. Como quem pensa alto, Presidente fala, de
novo: - Nem que nós havera de se acabar tudinho em boca de cobra ou jacaré, eu
juro que não arredo pé daqui pra canto argum. Para onde, então, a gente podia
se mudar? Pra murrer de fome na cidade, é mais melhor penar na varja. Pelo meno
no verão a gente não véve desinfeliz.
Suspirando fundo, Maria Flor concorda, embora
com alguma grosseria: - Não fica pensando bestera, homem. Eu só ia de vez morar
na cidade se fosse presa por sordado e levada para o xilindró. Aqui a gente
pega bote e dentada de cobra, ferrada de caba, arraia e lacrau. Lá é carro que
mata, é bandido que assarta, é ruindade de patrão e ortoridade que só quer os
pobre como inleitor, engraxate e lavadeira. Tisconjuro!
Dando um tapa no próprio rosto, como
autoflagelação, mas, em verdade, esfarelando um carapanã impertinente, Antônio
confidencia, enquanto atira a bagana do cigarro dentro do rio: - Eu tô com muita
vergonha de ti e dos pirralho, Maria.
Abaixa a cabeça, mas, erguendo-lhe o queixo
com as mãos e fitando meigamente os seus olhos, indaga a esposa, com ternura na
voz: - Mas por que então, meu bem?
Usada com pouca freqüência, a expressão
carinhosa surge no instante psicológico exato. A esperta criatura intuiu
rapidamente a razão determinante do incomum desabafo e se sente na feminina
obrigação de confortar o seu humilhado e másculo companheiro.
Com a dificuldade visível de quem se esforça
querendo vomitar coisa intragável, ele comprime a mão da esposa de encontro ao
próprio coração e diz, num sussurro: - Eu churei na ilharga de vocês. E churei
como criança. Macho não chora, Maria. Só lagrima.
Lutando para não dar continuidade ao teimoso
pranto que já lhe ensopa os olhos amarelados, Maria Flor aperta-lhe fortemente
a mão calosa. Não pode dizer nada, ainda. Mas assim que consegue engolir o nó
da garganta, segreda-lhe ao ouvido: - Não pensa mais nisso, meu amurzinho.
Vergonha é robar e ser marvado. Tu só fez churar a morte tão triste do nosso
Tuninho. - Detém-se, engasgada. Mas logo completa, num só fôlego: - Eu inda te
quero mais bem dispôs dessa desgraça. Sei que tu é macho pra cachurro, mas tu
não deixou de ter um coração bom e amuroso dentro do peito.
E, de rostos unidos, os dois emocionados
caboclos ali ficam, durante longos minutos. Na cozinha, o jogo de baralho
prossegue, animado, a até uns palavrões já saíram por lá. É preciso, porém,
interromper o doce colóquio para servir mais uma rodada de café quentinho aos
participantes do velório. Como foi uma criança que morreu, não se bebe cachaça.
Só em vigília de adulto os varzeiros gostam de tomar umas duas ou três.
(Emir Bemerguy - "Maromba" - 1975)
quarta-feira, 16 de janeiro de 2013
América 500 anos
Este letra foi feita para o poema sinfônico em quatro movimentos "América 500 Anos", de autoria do Maestro Isoca. O texto é cantado no quarto movimento, e podemos ver a execução deste movimento no vídeo mais embaixo, que também traz a Canção de Minha Saudade, um dos hinos não oficiais de Santarém.
AMÉRICA 500 ANOS
(Poema Sinfônico – Coda)
Letra: Emir Bemerguy (Santarém-PA,
08.06.1992)
Música: Wilson Fonseca (Santarém-PA,
1992)
Enfrentando os perigos dos mares,
Sem temer o feroz desafio,
Um punhado de heróis produziu
Epopéia das mais singulares!
Empurrados por ventos potentes,
Dirigidos por Deus, sempre avante,
Descobriram um céu tão distante,
Com florestas, tesouros e gente!
Refrão
Novo Mundo de encantos sem par,
Fascinante, intocado, altaneiro,
Universo esperando o pioneiro
Que o viesse, afinal, desbravar!
A Cristóvão Colombo os louvores!
O gigante transpôs oceanos
E há quinhentos fantásticos anos
Encontrou um rincão de esplendores!
Do Evangelho aos clarões divinais
E à sombra da Cruz, tempo afora,
Foi a América em frente e, agora,
Ao passado não volta jamais!
Pisa firme no chão do presente,
De olhos postos no grande porvir!
Progredindo haverás de seguir!
Deus te salve, eternal Continente!
terça-feira, 15 de janeiro de 2013
A medicina de mamãe
Trecho do livro de memórias de meu pai - "Enquanto eu me lembro" - em que ele conta os métodos pouco ortodoxos usados por minha avó para manter os filhos livres de vermes...
A MEDICINA DE MAMÃE
Sempre que presencio as dengosas reações dos meus
filhos ante a ingestão dos geralmente coloridos e saborosos remédios atuais,
logo sinto a memória retroceder no tempo e me ponho a recordar vivências
marcantes da longínqua meninice. Adoecer, nos dias de hoje, é incomparavelmente
menos martirizante do que outrora, quando, às vezes, só o medo de bárbaros
tratamentos restituía magicamente comprometidas saúdes.
Vermífugos... Purgantes... Hoje, a criança nem
sequer precisa saber que está sendo medicada contra lombrigas: a mãezinha
adiciona ao leite, à refeição, um produto que ali se dissolve sem alterar o
sabor do alimento e irá exercer poderosa ação sobre os parasitas intestinais.
Naquela época, porém, a escola podia até ser “risonha e franca”, mas os
tratamentos eram carrancudos e confundiam franqueza com grosseria.
Duas vedetes então pontificavam na área dos
purgativos: o óleo de rícino ou mamona e o quenopódio, cada qual mais
intragável do que o outro. E as duas pragas se reuniam para formar uma
terceira: a “Panvermina”. Pois era esta que Mamãe preferia - uns comprimidos
redondos, enormes, moles, que, ao menor contato com os dentes, soltavam seu
conteúdo na boca, deixando um gosto de inferno, de alma penada. Agora, o
ritual, a cuja simples evocação meu rancoroso estômago ainda protesta, com
ânsias de vômito.
Eros e eu - os dois filhos maiores - tomávamos o
odioso remédio em todas as férias de fim de ano, tivéssemos ou não cara de quem
hospeda vermes nas estranhas. Às quatro horas da madrugada éramos acordados de
um sono dormido a prestações, tal o pavor do negro dia que nos aguardava. Creio
que a última noite de um condenado à morte não deve ser muito mais agoniada...
Mamãe aparecia já com o vidro de “Panvermina” em
uma das mãos e uma tigela de horroroso chá fumegante na outra. Eu sempre tinha
o privilégio de ser guilhotinado primeiro, supostamente pela maior docilidade,
mas, de fato, porque mais intenso era o medo da digestiva palmatória. Fazendo o
sinal-da-cruz, fechava o nariz e ia engolindo as terríveis bolotas (seis, em
média), ajudando-as a descerem com uns forçados goles de chá. Afinal,
friccionando o ventre para conter os espasmos expulsivos, estava pronto para
assistir à melhor parte do espetáculo: a “panverminação” de meu pobre mano que,
até hoje, trinta e tantos anos volvidos, só toma qualquer pílula em perigo de
vida. E vale a pena um parágrafo.
Eros fazia o maior dos escangalhos para ser
medicado. Enquanto para mim aquilo tudo se apresentava como um “purgatório” em
pleno sentido, ao seu infantil julgamento a tortura da madrugada assumia as
fantasmais proporções de um enlouquecedor inferno. O rebelde guri estragava
meia dúzia de cápsulas para deglutir uma só, mordendo-as, espatifando-as na
boca semi-cerrada. Isto, por entre uma alegre banda de música de pescoções e
chineladas gradativamente numerosos; as bordoadas iam se tornando mais
vigorosas e frequentes na exata proporção em que o chá esfriava e a
“Panvermina” era desperdiçada. Ele só engolia mesmo as petecas diabólicas
quando papai deixava de fumar, nervoso, na rede vizinha e evoluía dos ralhos
inofensivos aos enérgicos bolos de palmatória. Que drama, ó Deus!... E ao
terminar a suarenta agonia anual, o Sol já saíra, tanto ela se prolongara; às
vezes, entretanto, até as auroras se antecipavam, curiosas, para verem que
confusão era aquela...
Só isto? Coisa nenhuma! Agora, serenados os ânimos
e reposta a ordem no campo de batalha, vinha a não menos temível “dieta”: vinte
e quatro horas trancados num quarto calorento (golpes de ar eram um perigo...),
tomando chá e caldo de galinha! Jamais entendi as misteriosas razões do severo
resguardo, mas desconfio que os antigos tentavam agredir os vermes por todos os
lados, privando também os indefesos bichinhos de luz e ar... Eis uma das definitivas
consequências de tão insólita medicina: Eros e eu nunca mais, vida a fora,
suportaríamos chá de qualquer espécie e muito menos caldo de galinha! Ah! Não
existe nada como essas tão saudosas fixações da “infância querida que os anos
não trazem mais”!
Pode-se indagar, agora: mas valia mesmo a pena
toda essa aflitiva encrenca? “Meninos, eu vi!” - diria o austero poeta: vi, com
estes olhos que não gostaria que a terra comesse tão cedo, vi sadias lombrigas
de quase meio metro desabarem, céleres, dos envenenados intestinos para menos
pestíferos urinóis! Mas, por vingança, deixavam sempre - os demônios! - um
estoque de larvas para as diversões das próximas férias...
Faz uns dez anos. Estava eu numa farmácia da
cidade, quando ouvi claramente uma senhora humilde perguntar à balconista se
ainda vendiam “Panvermina”. Saí, apavorado, vendo e ouvindo súbitas visagens:
mamãe apareceu com a tigela e o amaldiçoado vidro e presenciei nitidamente os
esperneantes berros de meu valente mas sempre derrotado irmão.
(Emir Bemerguy - Enquanto eu me lembro -1975)segunda-feira, 14 de janeiro de 2013
sexta-feira, 11 de janeiro de 2013
O velório
Mais um trecho do romance "Maromba". Aqui se conta a história do velório de um ribeirinho.
Maria Flor está
cerzindo umas roupinhas das crianças. Atraída por movimentos de remos forcejando contra a correnteza, levanta os
olhos do trabalho: uma canoa com dois vaqueiros chega à
casa da fazenda.
- Ei, seu Presidente!
- O papai não tá, responde um dos garotos.
- Que é, Pedroca? - interroga a patroa, reconhecendo o caboclo. ~
De cabeça baixa, o reforçado varzeiro comunica:
- Seu Romuardo Bicudo morreu, não faz bocado. Paresque foi besterada no coração dele. O enterro é amanhã e a gente viemo convidar pro quarto.
Espantada com
a brutal notícia, Maria faz o sinal da cruz,
reza em silêncio e promete
que combinará com o
esposo, ao chegar com
Zé Potoca, o jeito de
comparecerem à residência enlutada.
Nesse mundo líquido, cujo único e frágil cordão umbilical com a
civilização é um rádio de pilha, velório - ou “quarto”, como eles chamam - é uma forma de divertimento, quase uma festa.
Sem lazer algum, a braços com uma luta feroz e
diuturna pela simples sobrevivência, os
ribeirinhos transformam a vigília para um defunto em desinibida reunião social
onde nada falta: comilança, beberança, baralho, dominó, mexericos. Por isso, ninguém perde um desses encontros e cada família colabora com
alguma coisa para amenizar a situação dos
herdeiros sem herança. Como ocorre nos puxiruns, leva-se um pouco de querosene, farinha, café, bolacha, velas de cera e cachaça.
Deixando as crianças com
Zé Potoca, lá se vai, à noite, o casal. Apesar de a distância ser pequena, como está ventando muito, preferem usar o barco “Flô das onda II” para vencer os quatro quilômetros da viagem. Como contribuição para o ato fúnebre, levam um
quilo de farinha, açúcar e meio litro de querosene.
Encontram muita gente e pouco choro. Protestante
não é, em geral, espalhafatoso
ante a morte, pois, convicto de que
o extinto está salvo só por causa da fé que possuía, de certo modo exulta quando um irmão se vai, porque ele ganhou o céu antecipadamente, apenas dizendo “Jesus é
meu Senhor”. Após cumprimentar os parentes do
falecido, cada qual se arruma como pode. As
mulheres fofocam na ampla cozinha, enquanto
os homens fazem avaliações de prejuízos na sala da frente. Não há velas acesas e nem se fala
em rosário de Nossa Senhora, desde que o morto era Testemunha de Jeová, não tendo necessidade alguma dessas gorjetas aos santos para
transpor, lampeiro, os
portões do paraíso...
Conversa vai e vem, café aparece e some,
cachaça chega e não dá para
quem quer. A família é
protestante, mas respeita
os costumes da várzea e deixa beber quem
quiser. Começa, então, um animado “sete e meio”, o famoso e fácil jogo de baralho. Formam-se três rodas,
sendo uma na mesa grande e duas no chão, à
luz de resfolegantes “Aladins” - candeeiros de luxo,
usados somente em ocasiões especiais.
- Hum!... Essa curimatá muquiada
tá muito porreta!
- proclama Nhuquinha Catauari, farejando o ar, de
cara erguida. O cheiro da coirona mata a catinga do querosene. Vou tirar a barriga velha
da misera nesse quarto
do Bicudo.
-
Bota mais uma aqui,
Rosa! - pede Miró Sardinha. Hoje eu quero encher a cara pra não me alembrar dos perjuízo dessa
enchente do cão.
E
a temperatura vai esquentando... Saem anedotas
pouco familiares...
As reações evoluem das discretas risadinhas particulares às
estrondosas gargalhadas coletivas... Come-se
enquanto se joga baralho, dominó e conversa
fora. Brinca-se. A noite avança. De repente,
a queixa insultuosa: - Tu tá rubando, seu
curno! - grita
Zeca Tralhoto, a
esfregar as cartas do baralho no focinho de Juca Toró.
Com
várias doses de aguardente no lombo, o ofendido nem pede explicações: planta o braço
no pé do ouvido de Tralhoto, quase tão bêbado quanto ele próprio e... o tempo fecha! Lá
da cozinha, a
mulherada berra:
- Meu Deus!
Respeitem o falecido!...
Não
se respeita nada. Reviram-se as cadeiras, candeeiros
são quebrados. Até o defunto desabou da cama
onde estava, pois, generalizado o conflito
e com ambiente meio escuro, um dos brigões
caiu por cima dele.
Porre como se encontrava, julgou que
fosse um adversário e não teve dúvidas: encheu de murros
as ventas de Romualdo e o fez rolar para o chão, a pontapés!
Quase
todos trocam
coices e poucos tentam acalmar os valentes, pondo
alguma ordem naquela tremenda bagunça. Diversos caíram no rio, à força de empurrões,
tapas ou pisões, e a velha Nica Farofa está de cabeça partida, tal o
entusiasmo de um cascudo que lhe acertaram com um dominó.
Musculosos e abstêmios, os filhos de Romualdo
Bicudo, ajudados por Presidente, gritam, pedem calma, por entre bofetões
e gravatas distribuídos entre os que
precisavam aprender a criar vergonha, ao menos em velórios.
A
muito custo, após dez minutos de pau solto e escoriações de
larguras variáveis, o ambiente retoma a perdida
paz. O defunto readquire
sua dignidade comprometida, providenciam-se curativos. Os mais bêbados são postos em sossego, amarrados
nas canoas, e a liturgia prossegue, entre
novas doses de café, merendas e joguinhos de
dominó e baralho. Ninguém bebeu mais, porque a cana acabou.
A noite já exibe
vergonhosas
rugas de velhice remelenta. Não tardará muito a ceder, emburrada como fedelho de
castigo, o trono a um novíssimo dia de luzes
e de luto, de lutas
sem lucros.
Sepultaram
Romualdo no
cemitério de Paricatuba e ele se enfiou no
túmulo com os óculos na cara esmurrada: era sua
derradeira vontade,
expressa nos estertores da morte. Com
sacrifício, pagara as lentes esverdeadas no crediário da “Ótica
do Povão”, lá na cidade, e não queria deixá-las para ninguém. Talvez pretendesse apreciar melhor o
festim dos vermes sobre suas carnes...
Voltando ao lar, Maria Flor comenta, entre dois bocejos: - Puxa! Esse quarto do seu Romuardo até que não foi ruim. Tem uns tão chato
que dá até vontade de dormir. A briga foi
animada e eu só não gustei de jogarem o defunto no chão.
Antônio concorda, com uma restrição: - É. Eu só não achei mais melhor porque até agora não
sei quem foi
o filho duma égua
que me sapecou um baita beliscão na bochecha da bunda,
na hora da porrada. Quase arranca um pedaço. Vou até fumentar com andiroba e saro
Vute!
- finaliza a companheira. Quem sabe, meu bem, se
não foi o falecido Bicudo. Benzendo-se, explica
a hipótese: -
Ele era tão brincalhão!...
(Emir Bemerguy - trecho do romance "Maromba" - 1975)
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